quarta-feira, 24 de junho de 2009

ESCRAVISMO DE PLANTATION


Nos séculos que se seguiram ao colapso do Império romano, a escravidão não desapareceu por completo na Europa ocidental e mediterrânea. No entanto, no decorrer da Baixa Idade Média, a escravidão como sistema de trabalho deixou de existir no Ocidente europeu, excetuando-se os países do Mediterrâneo, isto é, das penínsulas Ibérica e Itálica. Mesmo aí, ela foi, nos séculos XIV e XV, tão-somente uma instituição urbana, com importância limitada no conjunto da economia; o emprego em larga escala de cativos na produção agrícola havia se tornado residual nestas últimas regiões. A recriação do escravismo, com o emprego massivo de escravos nas tarefas agrícolas, seria realizada por portugueses e espanhóis só após a segunda metade do século XV, com a introdução da produção açucareira nas ilhas atlânticas orientais (Canárias, Madeira, São Tomé), e, no século XVI, com a colonização da América.

Baseada na experiência acumulada com o fabrico do produto nas ilhas da Madeira e de São Tomé, a Coroa portuguesa procurou estimular a construção de unidades açucareiras no Brasil desde a década de 1530. Mas, até os anos 1570, os colonos encontraram grandes dificuldades para fundar em bases sólidas uma rede de engenhos no litoral, como problemas com o recrutamento da mão-de-obra e falta de capitais para financiar a montagem dos engenhos. Ao serem superadas tais dificuldades, com atrelamento da produção brasileira aos centros mercantis do Norte da Europa e articulação do tráfico de escravos entre África e Brasil, tornou-se viável o arranque definitivo da indústria de açúcar escravista da América portuguesa, o que ocorreu entre 1580 e 1620, quando o crescimento acelerado da produção brasileira ultrapassou todas as outras regiões abastecedoras do mercado europeu.

Cabem aqui algumas palavras sobre o papel que o tráfico transatlântico de africanos desempenhou no deslanche da produção açucareira brasileira. A mão-de-obra empregada na montagem dos engenhos de açúcar no Brasil foi predominantemente indígena. Uma parte dos índios (recrutados em aldeamentos jesuíticos no litoral) trabalhava sob regime de assalariamento, mas a maioria era submetida à escravidão. Os primeiros escravos africanos começaram a ser importados em meados do século XVI; seu emprego nos engenhos brasileiros, contudo, ocorria basicamente nas atividades especializadas. Por esse motivo, eram bem mais caros que os indígenas: um escravo africano custava, na segunda metade do século XVI, cerca de três vezes mais que um escravo índio. Após 1560, com a ocorrência de várias epidemias no litoral brasileiro (como sarampo e varíola), os escravos índios passaram a morrer em proporções alarmantes, o que exigia reposição constante da força de trabalho nos engenhos. Na década seguinte, em resposta à pressão dos jesuítas, a Coroa portuguesa promulgou leis que coibiam de forma parcial a escravização de índios. Ao mesmo tempo, os portugueses aprimoravam o funcionamento do tráfico negreiro transatlântico, sobretudo após a conquista definitiva de Angola em fins do século XVI. Os números do tráfico bem o demonstram: entre 1576 e 1600, desembarcaram em portos brasileiros cerca de 40 mil africanos escravizados; no quarto de século seguinte (1601-1625), esse volume mais que triplicou, passando para cerca de 150 mil os africanos aportados como escravos na América portuguesa, a maior parte deles destinada a trabalhos em canaviais e engenhos de açúcar.

O sucesso da produção escravista de açúcar da América portuguesa logo atraiu a atenção dos demais poderes coloniais europeus. Já em fim do século XVI, era crescente o envolvimento de negociantes ingleses e holandeses no comércio açucareiro entre Brasil e Europa. As invasões holandesas da Bahia (1624) e Pernambuco (1630) foram em grande parte motivadas pelo dinamismo da economia açucareira dessas capitanias. Os membros e acionistas da Companhia das Índias Ocidentais holandesas (WIC), contudo, na época em que comandaram a invasão das regiões produtoras de açúcar no Brasil, desconheciam por completo os segredos da produção do artigo, que se resumiam basicamente a três aspectos: as técnicas de processamento da cana-de-açúcar, as técnicas de administração dos escravos e a organização do tráfico negreiro transatlântico. Cedo os invasores perceberam a estreita relação geoeconômica que havia entre a África e as regiões de plantation escravista na América. De nada valeriam as possessões brasileiras se não se conquistassem os pontos que forneciam escravos do outro lado do Atlântico. Por esse motivo, sob o comando de Maurício de Nassau, a WIC promoveu em 1638 a conquista do entreposto português de São Jorge da Mina e em 1641 a invasão de Angola.

O domínio holandês em Pernambuco durou pouco. Em 1645, eclodiu a revolta dos colonos luso-brasileiros, que levaria à expulsão definitiva dos holandeses da América portuguesa em 1654; antes disso, em 1648, os colonos luso-brasileiros do Rio de Janeiro se responsabilizaram diretamente pela expulsão dos holandeses de Angola. Com o fracasso da experiência brasileira e angolana, a WIC deixou de priorizar a produção de açúcar e passou a direcionar-se para a compra do produto obtido em regiões que não estavam sob seu comando direto. Nesse sentido, os comerciantes holandeses procuraram estimular os colonos ingleses e franceses do Caribe a produzir açúcar. Ainda durante a ocupação do Brasil, na segunda metade da década de 1640, os mercadores holandeses transmitiram as técnicas dos engenhos brasileiros aos colonos ingleses de Barbados e aos franceses da Martinica e Guadalupe, além de abastecê-los com escravos trazidos dos entrepostos da WIC no golfo da Guiné. A partir da década de 1660, a produção de açúcar com mão-de-obra escrava nas ilhas inglesas e francesas verificou crescimento notável, além de os mercadores desses dois países passarem a envolver-se diretamente no tráfico negreiro transatlântico. No começo do século XVIII, a paisagem física e humana do Caribe havia se modificado completamente: as ilhas converteram-se em imensos canaviais e a população tornou-se esmagadoramente negra, quase toda ela escravizada.

No curso das guerras contra os holandeses no Atlântico Sul, o abastecimento de escravos aos engenhos brasileiros diminuiu de forma sensível. Se, entre 1601 e 1625, haviam sido introduzidos cerca de 150 mil africanos escravizados na América portuguesa, no quarto de século seguinte esse volume se reduziu para apenas 50 mil. De todo modo, a invasão holandesa de Pernambuco e os conflitos que se seguiram contra os colonos luso-brasileiros abriram boas oportunidades de resistência aos escravos que haviam desembarcado em grande número no primeiro quarto do século XVII. Não por acaso, o aporte cultural decisivo para a configuração política do reino "neoafricano" de Palmares foi fornecido pelos grupos humanos originários do Centro-Sul da África, exatamente a zona em que os traficantes portugueses mais operaram a partir de fim do século XVI.

A dimensão e a força do quilombo de Palmares se explicam não apenas pela conjuntura do conflito imperial entre portugueses e holandeses, mas pela própria demografia da região das plantations açucareiras pernambucanas. Qualquer assertiva categórica sobre a composição da população colonial antes do século XVIII é perigosa, mas creio que não há riscos em afirmar que quando os holandeses invadiram a capitania de Pernambuco, os escravos negros predominavam em termos numéricos sobre a população branca — e mesmo sobre os indígenas "domesticados". Pode-se afirmar também, com base nos poucos dados disponíveis, que a população negra livre era relativamente diminuta. Tratava-se, enfim, de um quadro demográfico bastante propício à eclosão de movimentos coletivos de resistência escrava, como a experiência posterior do Caribe inglês bem o demonstraria.

Após a expulsão dos holandeses, as tropas luso-brasileiras se encarregaram do combate sem trégua aos palmarinos. O grande problema a ser enfrentado pelos colonos, no entanto, encontrava-se na esfera econômica. A rápida montagem do complexo açucareiro escravista nas Antilhas a partir da década de 1650 logo trouxe forte impacto negativo para a economia açucareira na América portuguesa. O crescimento das produções inglesa e francesa no Caribe derrubou o preço do açúcar nos mercados europeus, ao mesmo tempo que a demanda por trabalhadores negros nas plantations antilhanas aumentou os preços dos escravos no litoral africano. Além disso, os senhores de engenho luso-brasileiros tiveram que enfrentar outros dois problemas. Em primeiro lugar, devido às políticas mercantilistas adotadas pela Inglaterra e pela França na segunda metade do século XVII, que procuravam estimular a produção antilhana garantindo-lhe proteções monopolistas, o açúcar brasileiro foi praticamente excluído desses dois mercados europeus. Em segundo lugar, entre 1640 e 1668, Portugal travou uma dura guerra contra a Espanha em prol da independência, no exato momento em que o "Império da Pimenta" oriental entrava em colapso. Na segunda metade do século XVII, as possessões do Novo Mundo se tornaram o sustentáculo econômico de Portugal. Uma tributação pesada sobre o açúcar brasileiro foi criada então para dar conta dos gastos com a diplomacia e a defesa do Reino.

Tais atribulações não impediram a sobrevivência da economia açucareira na América portuguesa. Em que pesem a desorganização trazida pelas guerras do Atlântico Sul entre as décadas de 1620 e 1650, a elevada taxação pós-1650, a concorrência antilhana e a restrição do acesso a certos mercados europeus, os senhores de engenho luso-brasileiros conseguiram manter a produção de açúcar em patamares estáveis. Para tanto, foi vital a consolidação do sistema atlântico bipolar unindo a África aos portos brasileiros, assegurada pela reconquista de Angola em 1648. Na segunda metade do século XVII, foram introduzidos cerca de 360 mil africanos escravizados no Brasil. Tal sistema, ao garantir um fluxo contínuo de escravos a baixo custo para os engenhos brasileiros, viabilizou a atividade econômica açucareira da Colônia em uma conjuntura internacional bastante adversa.

Algumas evidências sugerem que, naquele período conturbado da economia açucareira, as alforrias ganharam impulso. É certo que a manumissão de escravos se fez presente na Colônia desde os primeiros anos. No entanto, a existência de documentação seriada da prática apenas na segunda metade do século XVII talvez indique que ela tenha se disseminado só após essa época. Na historiografia da escravidão brasileira, um dos primeiros estudos feitos sobre o tema tratou exatamente da Bahia — ao lado de Pernambuco, o centro da economia açucareira colonial — entre 1684 e 1745. O pesquisador Stuart Schwartz registrou e analisou uma série de práticas relacionadas à manumissão, as quais depois se repetiriam em diferentes tempos e espaços na América portuguesa e no Império do Brasil. Dentre as mais de mil cartas de alforrias examinadas pelo autor, houve uma proporção constante de duas mulheres libertadas para cada homem. Dado o amplo predomínio numérico de homens no tráfico transatlântico e na própria composição das escravarias, escreve Schwartz, "as mulheres obtinham liberdade numa proporção muito maior do que as expectativas estatísticas". Igualmente privilegiados do ponto de vista estatístico foram os escravos nascidos no Brasil, isto é, os crioulos e, sobretudo, os pardos: este grupo constituiu 69% do universo das alforrias, contra apenas 31% de africanos libertados.

Houve, por fim, grande proporção de crianças e adolescentes menores de 14 anos entre os alforriados. A tendência predominante de alforriar mulheres escravas em idade fértil, conclui Schwartz, comprometeu as possibilidades de reprodução demográfica auto-sustentável da escravidão brasileira, o que acabou por acentuar o papel estrutural do tráfico negreiro transatlântico para repor a força de trabalho escrava.

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